Ruth Helena Bellinghini: mídia sobre oncologia e psiquiatria

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Especializada em jornalismo científico pelo renomado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), a paulistana, Ruth Helena Bellinghini, 53 anos, tem uma longa e rica trajetória pelas redações brasileiras, tendo se tornando uma referência nacional em cobertura de temas voltados à tecnologia, saúde e ciência. Com trajetória iniciada como foca na Folha de S.Paulo, Ruth atuou pelo Jornal da Tarde e também pelo Estadão e Agência Estado, além de ter colaborado para veículos como Scientific American Brasil, Veja Tecnologia, dentre outros. Histórico este que possibilita a ela analisar a qualidade atual da cobertura da mídia brasileira no que tange temas como oncologia, que ela considera sua maior paixão, e também a psiquiatria, seu mais recente amor, nascido com o convite para atuar na assessoria de imprensa do Instituto de Psiquiatria da USP (IPq).

Atuando no IPq e tendo como parceiros o Professor e psiquiatra Wagner Gattaz, que dirige o departamento e o  psiquiatra e jornalista Francisco Bevilacqua Guarniero, Ruth avaliou o quanto os pacientes psiquiátricos são alvo de estigmas por parte da cobertura jornalística, em especial o portador de esquizofrenia. Foram avaliados 229 textos, sendo 89 (39%) registros em ciência e saúde, com tendência à impessoalidade; 62 (27%) registros em crime e violência, em que, segundo os autores, o “diagnóstico” de esquizofrenia é feito por leigos e “corroborado” por uma arqueologia da vida do suspeito que arrola toda sorte de comportamentos fora de padrão e 78 (34%) de uso metafórico, sempre de caráter depreciativo. 

Partindo destes dados, o trabalho conclui que a maioria dos textos encontrados não dá voz ao portador de esquizofrenia e a seu sofrimento, além de banalizar a doença psiquiátrica ao empregá-la fora de contexto para caracterizar decisões políticas e econômicas contraditórias ou de caráter duvidoso. Além disso, ressalta Ruth, também reforça o estigma que pesa sobre o portador de esquizofrenia ao personalizá-lo apenas nos raros casos de violência em que se supõe seu diagnóstico. O artigo, publicado na revista de Psiquiatria Clínica, está disponível em goo.gl/1EEMcY.

Em entrevista exclusiva para o blog jornalismOncologia, Ruth faz críticas em relação a cobertura jornalística sobre esquizofrenia e câncer, traz dicas para profissionais de Comunicação que visam focar a carreira no jornalismo científico, analisa – separadamente – a mídia brasileira e internacional e muito mais. Confira!

Como o jornalismo e a ciência surgiram e se estabeleceram em sua vida?
O jornalismo eu sei. Eu queria muito escrever e consta que quando eu tinha uns 4 anos dizia que ia estudar no Colégio Dante Alighieri porque lá já tinha um jornalzinho. Foi nessa época que aprendi a ler e lia jornal todo dia, sem entender muita coisa, é verdade. Eu acho que toda criança é curiosa e eu fui criança nos anos 60, com a corrida espacial. Queria ser astronauta, claro, e meus pais me deram um telescópio. Daí fui para o Dante Alighieri na quinta série. Lembro de uma aula que marcou para sempre minha vida, sobre Galileu Galilei e o método científico. Tinha três aulas práticas semanais em laboratório de biologia, física e química da 5.a à 8.a série no Dante e depois nos três anos de colegial no Colégio Bandeirantes. Logo me apaixonei por genética, já na 7.a série. Até hoje me arrependo por não ter feito biologia, pois eu queria comparar o DNA de pessoas saudáveis com o de pessoas com câncer, mas um professor disse que isso era coisa pros meus netos e a tonta aqui acreditou.

Qual é o grande legado para sua carreira a partir da especialização em jornalismo científico no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT)?
Em termos financeiros, nenhum. Num país onde poucos jornais reservam espaço para cobertura de ciência, não me rendeu grande coisa. Mas em termos pessoais, me deu uma segurança maior para escrever e para falar. Quando voltei, fiquei mias uns oito meses no Estadão e passei sete anos dando palestras sobre biotecnologia para adolescentes. Ficou muito mais fácil também separar o joio do trigo: ver que novidade é realmente nova (jornais, revistas e principalmente a TV estão repletos de “descobertas” feitas há dez anos, sendo apresentadas como novidades) e saber o que é realmente importante. Mais que isso, saber analisar – dentro do que é importante – o que é realmente de interesse do público leigo. 

Há uma significante diferença entre a cobertura de ciência feita pela mídia no Brasil com a adotada em outros países?
Depende do país, creio, e do veículo. A despeito da crise, o New York Times continua mantendo equipe especializada e dando bastante espaço para o tema. O The Guardian também não faz feio. Existem veículos com preocupação clara em traduzir o “cientifiques” para o idioma local; e infelizmente uma enormidade de veículos que trata o tema como entertainment, com pitada de sensacionalismo, prometendo curas e avanços que sabemos que ainda estão há décadas de distância.

Quais assuntos em ciência mais aguçam o seu faro jornalístico?
Câncer, câncer e câncer, que é uma paixão; genética, epigenética; biotecnologia; embriologia; medicina e saúde em geral e agora a psiquiatria em particular. Ah, ainda amo “o espaço, a fronteira final”.

A partir de qual observação o Instituto de Psiquiatria da USP decidiu analisar a esquizofrenia sob a visão da cobertura feita pela mídia?
Foi por acaso. O Prof. Dr. Wagner Gattaz, diretor do IPq, é uma pessoa extremamente preocupada com o estigma que pesa sobre o paciente psiquiátrico e o portador de esquizofrenia em especial, porque convive com isso na prática diária. E me pediu par fazer um levantamento na mídia sobre como se falava sobre esquizofrenia. Eu comecei a encontrar coisas interessantes, fiz uma primeira análise e quando conversamos, ele me perguntou se não deveríamos escrever um paper. Francisco Guarniero, que é psiquiatra e jornalista e já tinha feito um trabalho analisando a Folha de S. Paulo, também se somou a nós.

O estudo destaca que, na maioria das reportagens analisadas, o portador de esquizofrenia não foi um porta-voz. A ausência do paciente enfraquece a pauta?
Enfraquece e muito. E em psiquiatria isso é complicadíssimo. O paciente é estigmatizado pela própria família e tem um medo terrível de se expor, de que vizinhos, parentes ou chefe saibam que ele faz tratamento psiquiátrico. Não importa qual a doença, paciente psiquiátrico dificilmente se expõe. É como se não fosse um doente, mas alguém com vício moral ou falha de caráter. O sofrimento é duplo e intenso.

A mídia, segundo o estudo, abordou o tema quase sempre de forma depreciativa, inclusive com textos que traziam diagnósticos da doença aferidos por leigos. Quais casos foram os mais emblemáticos durante o período de análise?
O massacre do Realengo, sem dúvida alguma. A Veja se refere a Wellington de Oliveira como “boçal que decidiu transformar uma vida de rejeição social em brutalidade”, por exemplo. Não aparece em nenhuma reportagem algum psiquiatra que tenha tratado de Wellington e confirme que ele era portador de esquizofrenia – ele podia ter transtorno de personalidade esquizoide, transtorno esquizoafetivo, esquizofrenia ou qualquer outro problema. Quem fala é a vizinhança. E o que passa despercebido é que, após a morte da mãe, o rapaz é simplesmente abandonado pela família: ninguém sabia o que ele fazia, se estava se tratando ou não. E assim perpetua-se a ideia de que o paciente psiquiátrico é violento e o esquizofrênico mais ainda quando, na verdade, o paciente psiquiátrico raras vezes é violento e costuma cometer atos violentos contra si mesmo.

Em um primeiro momento vocês analisaram todo o conteúdo sobre esquizofrenia publicado na Folha de S.Paulo ao longo de um ano e, posteriormente, ao longo de mais um ano, em outros veículos de comunicação. Houve alguma diferença marcante entre a cobertura feita pela Folha com a feita pelos demais?
A Folha foi o único jornal que deu voz a um paciente e à mãe de um paciente. E, curiosamente, o material mais interessante publicado pela Folha sobre esquizofrenia estava na editoria de Economia, em três matérias sobre a participação do matemático ganhador do Nobel John Nash. Uma das matérias dizia “a esquizofrenia não o define”. É claro que não: é seu trabalho genial que o define!

Considerando o passado e os dias atuais do jornalismo em ciência e saúde há equívocos e méritos em comum na forma de se noticiar a esquizofrenia e o câncer?
É claro! Os jornais e TVs só falam de psiquiatria se houver um crime brutal ou se a pílula for bem dourada: uma depressãozinha leve, um TOC leve, pasteurizado… Em O Imperador de Todos os Males,  Siddhartha Mukherjee conta que uma americana, nos anos 50, ligou para o New York times pedindo que uma reunião sobre câncer de mama fosse divulgada. “Senhora, o New York times não publica a palavra câncer, nem a palavra mama, muito menos juntas,” foi a resposta que ela ouviu. Quando menos se fala sobre uma doença, menos informação se transmite e maior o mistério e o estigma que ela gera. Eu sou do tempo que câncer era “aquela doença ruim” (como se alguma fosse boa…), uma espécie de castigo divino que ninguém sabia direito de onde vinha. Mas os avanços são tantos, que isso mudou. Agora falta a psiquiatria.

O que mais lhe causa fascínio nas pautas voltadas ao câncer?
O fato de que essas doenças chamadas câncer, que eram um enigma até poucas décadas atrás, estão ás vésperas de produzir uma revolução não apenas na própria definição e classificação, mas em toda a medicina. Ou seja, o que era “atraso” dentro da medicina hoje é a ponta de lança, é o que abre fronteiras. A outra coisa fascinante – embora negativa – é que apesar da abundância de informação clara e séria, um monte de gente adora achar que câncer é uma doença simples, que pode ser curada com gengibre, suco de goiaba, semente de carqueja ou o que for; e que tratamento e medicação alvo-específica não passam de tramóias da indústria farmacêutica para lucrar. Acho impressionante a persistência do mito de que a indústria “tem a cura do câncer”, mas não divulga porque assim lucra mais…

Há veículos de comunicação no Brasil que traduzem, ao pé da letra e sem qualquer análise da veracidade do conteúdo, as notícias veiculadas em outros países. Quais erros mais grosseiros, que você se recorda, foram decorrentes desta prática?
Ah o mais recente foi uma matéria da EFE publicada pelo UOL, na esteira, claro, dos médicos cubanos. Um laboratório cubano anunciou que tem um peptideozinho sensacional que cura glioma em crianças e todo tipo de câncer epitelial em adultos, sem nenhum efeito colateral. Que quer “compartilhar com o mundo a fantástica descoberta” (publica, né, em revista indexada..), que será apresentada em “Congresso Internacional de Câncer em Havana”. Leia-se: “parece que temos uma molécula promissora e precisamos de grande laboratório internacional com muita grana para prosseguir a pesquisa”. Mas na atual conjuntura muita gente interpretou como “olha como os cubanos têm boas intenções e são generosos.” Está muito difícil encontrar profissionais especializados que saibam ler nas entrelinhas…

Considerando as publicações científicas e as voltadas para a difusão para um público leigo, o que e quem vale a pena ser lido por um profissional que deseja se especializar em jornalismo científico?
Gosto da New Scientist, que consegue falar de tudo em linguagem simples. Acho que a Folha ainda mantém uma equipe muito boa na área. Esqueça as revistinhas com títulos interessantes, porque viraram uma espécie de almanaque. O New York Times, claro, que costuma ser uma aula de jornalismo. Os sites das grandes instituições de pesquisa lá fora, a revista e o site da Fapesp, que faz um excelente trabalho de divulgação. E caçar blogs interessantes, daqui e de fora. Ah sim, e tirar dúvidas na Wikipedia em inglês.

Além do jornalismo e da ciência, é sabido que os felinos também têm lugar cativo na sua agenda. Freud explicaria seu amor pelos gatos?
Eu acho que é genético… Meus pais também adoravam gatos. Mas fico com a definição de um certo Leonardo da Vinci: “O menor dos felinos é uma obra-prima”.

Ruth Bellinghini com Eric Lander, que sequenciou o genoma humano
Ruth Bellinghini com Eric Lander, que sequenciou o genoma humano

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