Se por um lado os veículos tradicionais e ainda hegemônicos como Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo estão oferecendo um espaço cada vez mais diminuto para cobertura do câncer em suas páginas impressas, a doença não está mais distante da mídia nacional. Exemplo disso é a criação ao longo da última década de veículos brasileiros voltados exclusivamente para a difusão do câncer, casos das revistas Onco& e Rede Câncer e dos sites noticiosos Onconews, Câncer Hoje, Drauzio Varella, Oncoguia, Vencer o Câncer, dentre outros.
À frente de um destes veículos, o Onconews, está a jornalista especializada na cobertura de temas de saúde com ênfase na Oncologia, Valéria Hartt, mestre em Ciências pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Em entrevista exclusiva ao jornalismOncologia, Valéria Hartt compartilha sua visão sobre os temas e qualidade do discurso sobre câncer adotado na imprensa brasileira.

jornalismOncologia – Quais são os critérios que, na sua visão, precisam ser considerados no momento de eleger a pauta sobre câncer que será trabalhada?
Valéria Hartt – Na minha opinião, uma pauta jornalística persegue sempre o caráter da notícia, mesmo quando está em perspectiva a cobertura médico-científica. E a notícia se faz pelo caráter de atualidade da informação. O que é atual tem grandes possibilidades de virar pauta e esse é um critério clássico. No entanto, nem toda novidade tem relevo no mundo do câncer, em especial para o nosso público. A novidade precisa dialogar com a prática clínica e, portanto, tem que dialogar com o nosso panorama epidemiológico e ter evidência. Esse é outro critério. Significa que estamos atentos a guidelines e estudos de revisão. Uma revisão sistemática da Cochrane, da Pubmed, certamente é pauta. Por outro lado, a oncologia tem trazido uma série de estudos encorajadores. São achados que ainda carecem de evidências mais robustas, que não vão mudar a prática clínica, mas que mostram tendências e caminhos. Pesquisa Clínica sempre é notícia. Trazemos normalmente os resultados dos grandes estudos multicêntricos de fase III liderados por grupos internacionais, mas a pesquisa local de reconhecidas instituições também é pauta, em diversas áreas – da pesquisa com nanotecnologia em melanoma lá da USP de Ribeirão aos estudos do dr. Zequi em câncer de pênis ou do Icesp/INCA com moléculas brasileiras em trials de ovário e mama, como já noticiamos. Farmacoeconomia e a perspectiva de economia da saúde também interessam e ajudam a compor a pauta, assim como assuntos regulatórios.
jornalismOncologia – Como você avalia a agenda jornalística sobre câncer hoje no Brasil? Há assuntos que poderiam ser melhor e/ou mais explorados?
Valéria Hartt – O Jornalismo hoje está imerso em um mundo de mudanças. A mídia digital mudou a nossa forma de trabalhar e não se pode deixar de lado toda uma nova lógica de produzir e receber informação. A cobertura jornalística em oncologia não está despregada desse contexto. Em uma realidade informacional que privilegia a instantaneidade, o jornalismo analítico perde lugar. Por outro lado, acho importante falar não só do perfil do jornalismo enquanto prática, mas também do perfil desse profissional de imprensa que está aí. É um profissional rebaixado, socialmente desvalorizado, desafiado não só por essa revolução das novas mídias em que a produção de conteúdo virou commodity. O Zé Bob da novela das 8 não cumpria as pautas para correr atrás da Donatela e quando a gente achava que esse estereótipo já tinha chegado ao limite vem agora o blogueiro Teo Pereira, fofoqueiro assumido, a posar de jornalista. Essa é a construção social que se faz do jornalista, a formação está precarizada, o repertório ladeira abaixo e a cobertura em câncer faz parte desse todo. Então, é claro que muitos assuntos ficam de fora ou são tratados de forma superficial. Para ajudar, os grandes jornais diários têm normalmente um único caderno para dar conta do recado. Se aparece o papa, por exemplo, acabou-se o espaço para a cobertura em oncologia. Outra crítica é a nossa absoluta falta de tradição no jornalismo científico. O conhecimento hoje é mais integrado, existem muitas áreas de fronteira, onde a convergência é muito bem vinda. Mas não temos essa formação e menos ainda essa prática. Esse mesmo jornalista que vive uma formação precarizada e um repertório empobrecido vai dar conta das complexidades da cobertura de saúde e, mais ainda, da cobertura de oncologia? O STF derrubou em 2009 a obrigatoriedade do diploma e para exercer a profissão não precisa nem ter curso superior. Como o profissional vai se formar? De maneira autônoma, por recursos próprios, por esforço pessoal. E ainda é preciso brigar contra a maré, porque o mercado não nos favorece, certo? Temos que reconhecer que fica difícil.

jornalismOncologia – Como agir dentro deste contexto?
Valéria Hartt – Acho que é preciso lembrar da responsabilidade social do jornalismo, que é uma prática que se inscreve no espaço público e tem no seu DNA o compromisso com a responsabilidade social. A cobertura em saúde é por excelência parte desse compromisso. O cara que está lá fechando a sua matéria tem que lembrar que uma informação em saúde é coisa séria, tem que se preocupar com a credibilidade da fonte, com a evidência da informação, tem que checar os dados, tem tudo isso. Mas o tempo corre, a redação é enxuta, esse cara ta esmagado por pressões de toda ordem. E aí? Como resultado, de modo geral eu acho que a mídia leva o câncer de forma muito novidadeira ou dá relevo a algumas perspectivas que mais despertam o medo do que informam. Em um país com altas taxas de mortalidade por câncer do colo do útero, precisa destacar em manchete um único caso severo de uma reação à vacina do HPV, possivelmente mais psicogênica do que vinculada a efeitos da vacina? Isso é jornalismo responsável? São reflexões importantes. Em um país onde o câncer de mama mantém taxas de mortalidade elevadas, cabe destacar o estudo canadense sobre o papel da mamografia, sem trazer uma análise mais detida do que isso significa? É um achado que não invalida o estudo sueco, que aqui no Brasil tem a chancela de três sociedades médicas, mas muita gente deu como se aquilo fosse a última descoberta da medicina. Ouvi de uma fonte da Conitec “tá vendo? Me senti enganada por ter feito minha mamografia todos esses anos “. E se a médica sanitarista da Conitec leu e concluiu isso, imagine que tem mulher por aí que absolutamente descartou seu exame de controle anual. Depois, não tem Outubro Rosa que resgate uma informação dessa, que vem com o peso de um estudo científico que avaliou 90 mil mulheres, um trabalho longitudinal. Pra muita gente que leu sem a análise e, portanto, não relativizou esse achado, isso virou verdade e pronto, acabou.
jornalismOncologia – Quem e o que pauta hoje o jornalista?
Valéria Hartt – Vejo que na cobertura de oncologia o jornalista pauta pouco. Normalmente, ele é pautado, o que também é delicado. Nos últimos anos, doentes famosos ajudaram a trazer mais o tema para o dia a dia e a própria judicialização da saúde pautou a mídia em algumas reportagens, mostrando as nossas dificuldades regulatórias e as iniquidades de acesso na atenção oncológica. O TCU trouxe a público anos atrás um cenário de horror, a mídia repercutiu, mas a cobertura não é sistemática, falta frequência para que esses temas continuem na agenda. No Brasil, as questões de saúde são complexas, porque somos um país de dimensões continentais, nosso sistema público é universal e padece de subfinanciamento, tudo é uma encrenca sem tamanho. A Oncologia, então, é um mundo de complexidade. Querer que o jornalista cubra o jogo de futebol na quarta e na quinta acompanhe uma coletiva em um congresso de oncologia não vai funcionar. E quero deixar claro que não é uma crítica aos colegas, muito ao contrário. O profissional de imprensa talvez seja uma das grandes vítimas desse modelo que está aí.
jornalimOncologia – Quais são os maiores desafios de se fazer jornalismo baseado em evidência científica?
Valéria Hartt – O modelo dos periódicos e dos repositórios científicos dificulta. Todo mundo hoje fecha conteúdo. Você vê um artigo de interesse no The Lancet Oncology, só consegue acessar o abstract; vê um trabalho no New England ou no JCO, idem. Eu vivo pedindo a íntegra de artigos para poder trabalhar as minhas matérias. Recorro a biblioteca do A.C.Camargo, recorro a outras instituições, mas sei que é uma gentileza que me prestam. Então, fazer jornalismo baseado em evidências começa, de cara, pela dificuldade de acessar a literatura disponível. Outra dificuldade é a pressão desse mundo de novidades – e a oncologia é emblemática como exemplo de um setor em permanente busca do novo. Aquele critério de qualificar a informação pela evidência, nem sempre é tarefa simples. A dificuldade maior é o acesso às fontes no timing da notícia. Muitos médicos ainda compreendem pouco o dinamismo que está na natureza do nosso trabalho, o que faz uma falta enorme.
jornalismOncologia – Qual é o público-alvo da Onconews e a missão do veículo perante este público?
Valéria Hartt – O Onconews nasceu com a proposta de estabelecer um diálogo entre oncologistas e não oncologistas envolvidos no tratamento do câncer. O paciente chega pelas mãos do urologista, do ginecologista, do gastroenterologista. Esses profissionais precisam estar aptos a diagnosticar o paciente e esse é um ponto fundamental. Se de um lado persiste no Brasil o diagnóstico tardio, em fases avançadas da doença, de outro temos o manejo cada vez mais multidisciplinar e é preciso envolver um leque de profissionais, desde o diagnóstico até o tratamento, e fortalecer as abordagens de cuidados paliativos, ainda carentes de uma visão mais sistêmica. Não temos oncologistas clínicos para dar conta dessa transição epidemiológica. A população brasileira envelheceu e a idade é o principal fator de risco isolado associado ao câncer. Os casos vão aumentar – e a realidade hoje já começa a nos contar essa história. Então, o Onconews já nasceu com esse olhar multidisciplinar. Queremos falar com esses profissionais, de várias especialidades, que hoje estão diante do paciente. E veja que isso não se restringe à área clínica. Os patologistas, que paradoxalmente viveram um certo desprestígio nos últimos tempos hoje têm papel-chave, porque a oncologia caminha cada vez mais para a seleção terapêutica, para essa crescente compreensão da biologia molecular e da heterogeneidade tumoral. Os patologistas são a base de tudo e o Onconews quer dialogar com eles. Falamos de discordâncias diagnósticas em oncopatologia, assim como destacamos a take home message: olha, doutor, tem que fazer análise molecular, porque isso agora muitas vezes tem papel preditivo, prognóstico e interfere no tratamento. A família RAS em colorretal mostra isso de forma emblemática, idem para os tumores de mama HER2 e até em pulmão se sabe agora a importância da seleção molecular. Informação de qualidade é um bem precioso, assim como a visão multidisciplinar, que é um processo em construção. Podemos ter um papel nesse cenário, seja na oferta de informação com evidência e no destaque do que é notícia no mundo do câncer, seja na interlocução desses diferentes especialistas. Em última instância, a proposta é trazer um alinhavo que é importante e nutritivo para o paciente. Isso é informação em saúde, mas isso passa também pelo conceito de representação identitária. O homem é um ser gregário. Gostamos de nos ver, de estar no coletivo, de estar entre nossos pares. O Onconews quer ser esse espaço e esse fórum. Felizmente, fomos muito bem recebidos. O que surpreendeu foi perceber que questões que trazemos para a nossa pauta têm chegado também às universidades, aos estudantes de graduação médica, às Ligas de Oncologia. O contato com esse público tem crescido e temos certeza de que novos atores vão integrar esse caldeirão.
jornalismOncologia – É possível transmitir um conteúdo com clareza e objetividade, ao mesmo tempo, para oncologistas, médicos não oncologistas e público-leigo?
Valéria Hartt – Essa é certamente uma pergunta difícil e não temos respostas simples. Dentro da Ciência da Informação, que é do ponto de vista epistemológico a minha área de interesse e onde me inscrevo para pesquisar temas como esse que você provoca agora com essa questão, minha resposta imediata seria não. Por quê? Porque trabalhamos com a linguagem científica para a área médica e com o conceito de translação do conhecimento para o público leigo. O knowledge translation, a rigor, é uma metodologia que ampara essa transposição de um conteúdo científico para leigos. Isso parece conflitar com a regra geral do jornalismo – escrever com clareza, para o leitor médio. No entanto, no caso do jornalismo médico-científico prevalece a abordagem científica, sob pena do reducionismo, dos perigos da simplificação excessiva. É claro que em última instância essa é também uma decisão editorial e os nossos critérios de escolha são ancorados nessas perspectivas. Por outro lado, é importante relativizar essa questão. Há leigos e leigos, especialistas e especialistas. Em Sociologia da Ciência, Steven Epstein é um autor que trouxe um dos trabalhos fundantes dessa discussão, em uma obra chamada Impure Science, lançada pela Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, infelizmente ainda sem tradução em Português. Epstein nos fala de leigos que moldaram seu conhecimento pela experiência. Ele nos conta uma história que começou com as organizações de pacientes e o ativismo em HIV-AIDS e chegou a diversos movimentos na oncologia. São leigos que dialogam com a ciência e se tornam eles próprios os “especialistas de outra natureza”, como nos fala Kinsella, outro ator que debate o conhecimento leigo e suas formas de apropriação da Ciência. Para esse perfil de leigos, uma informação médico-científica pode fazer sentido, mas não falamos aqui do público leigo de forma ampliada, mas de um subgrupo.
jornalismOncologia – Você acredita que difundir informação de qualidade pode, de fato, aumentar o conhecimento da população sobre diagnóstico precoce e, consequentemente, reduzir a mortalidade?
Valéria Hartt – Sem dúvida. Todo o nosso trabalho vem do reconhecimento do papel e do valor da informação. A minha experiência pessoal com o câncer me trouxe essa certeza e no ambiente acadêmico na FIOCRUZ reforcei essas crenças. Veja que isso não é uma inferência pessoal apenas, porque existe todo um aporte teórico que referencia a certeza do papel da informação de qualidade em políticas de saúde, não só na prevenção e na detecção precoce, mas também no seguimento desse contexto de cuidados. A própria Organização Mundial de Saúde reconhece o papel da informação e do acesso à informação entre os chamados Determinantes Sociais da Saúde e em sua interlocução com políticas públicas. Existe um grupo de pesquisa de Informação nas ciências médicas da USP de Ribeirão Preto que tem acompanhado os programas informacionais da McGill, no Canadá. É um programa fantástico, no qual o paciente recebe informação de qualidade – e ainda em diferentes suportes, o que suscita a visão de letramento, o literacy, e até de competência informacional. Precisamos ter em conta que nem sempre a palavra escrita é a melhor forma de levar informação para todo mundo, assim como precisamos levar em conta que cada um de nós se apropria da informação de uma forma muito particular. Essa riqueza dos estudos da Informação nos mobiliza e buscamos aprimorar nossos processos o tempo todo. É uma responsabilidade muito grande levar informação em saúde e todo o time do Onconews é comprometido com essa visão.