Sobre ciência, mídia e cigarros

Há uma histórica divergência de opiniões entre um lado composto por indústria do fumo, indústria farmacêutica e parte da comunidade médico-científica e o outro lado formado por órgãos governamentais, movimentos antitabagistas e outra parte da comunidade médico-científica, que perdura desde os anos 30 do século passado. À época, médicos e dentistas estampavam anúncios publicitários de inúmeras marcas, dentre elas Lucky Strike, Viceroy e Cammels, alardeando benefícios como alívio de sintomas de ansiedade e depressão e uma teórica associação com conceitos de liberdade e sofisticação. Um debate sobre ética que escolhi como tema para meu texto para a disciplina de Bioética no curso de Mestrado do A.C.Camargo Cancer Center. O biólogo e professor Tiago Goss disse a nós alunos que alguns textos poderiam ser publicados no blog Cientistas descobriram que.. e para minha felicidade o meu foi um dos selecionados. O conteúdo foi editado para o formato do blog e pode ser conferido aqui.

Já o texto na íntegra compartilho com vocês aqui no jornalismOncologia:

SOBRE CIÊNCIA, MÍDIA E CIGARROS

Relatório divulgado em agosto de 2014 pela Organização Mundial de Saúde (OMS) – no qual a entidade demonstra sua preocupação em relação ao aumento do consumo de cigarros eletrônicos, principalmente entre os jovens (principal público-alvo das estratégias de comercialização do produto) – despertou o descontentamento explícito de parte da comunidade científica, que se manifestou imediatamente de forma contrária por meio de artigos em periódicos e na mídia em geral.

Pesquisadores do Departamento de Epidemiologia e Saúde Pública da University College London (UCL) definiram como “alarmista” o alerta da OMS sobre os malefícios relacionados ao consumo de cigarros eletrônicos. Em editorial publicado na edição de setembro do British Journal of Practice, os autores não apenas discordam da preocupação da OMS em alertar a população para o perigo que os chamados e-cigarettes podem representar para crianças e adolescentes como também afirmam que para cada milhão de habitantes que optam por trocar o cigarro convencional pelo modelo eletrônico é esperada uma redução de mais de 6 mil mortes prematuras no Reino Unido por ano. Eles foram além, ao calcular que esta troca de consumo significaria poupar a vida de mais de 54 mil habitantes do Reino Unido, região onde se estima haver 9 milhões de fumantes.

Na tentativa de legitimar esta posição, os autores Robert West, Professor de Psicologia da Saúde da UCL e Jamie Brown, seu aluno de pós-doutorado, afirmam que os cigarros eletrônicos são sim mais seguros que os cigarros comuns. Em entrevista para a agência BBC, de Londres, Robert West reforçou estes argumentos, destacando que os cigarros eletrônicos traziam baixas concentrações de produtos cancerígenos, chegando a ser 20 vezes menores que os cigarros convencionais. Além disso, ousou classificar como “puritana” a posição da OMS.

Não desqualificando as publicações favoráveis ao cigarro eletrônico, a OMS, por sua vez, afirma que este aparente benefício não justificaria expor os já citados jovens como também as mulheres grávidas, já que, conforme afirma a entidade, o produto pode prejudicar o crescimento do feto. Além disso, a OMS adverte que o vapor do dispositivo exala algumas substâncias tóxicas e nicotina no ar, além de não haver evidência que, de fato, este cigarro ajude os fumantes a abandonar o vício.

Estas opiniões discordantes mantêm atuais os debates sobre questões éticas em torno do tema tabagismo. De um lado estão os favoráveis ao produto eletrônico, avaliando-o como um instrumento para redução de risco, que – no âmbito de política de saúde – merece sim ser considerado passível de uma análise, não só como alternativa para combate ao tabagismo, como também para outras drogas. Outro argumento se baseia no livre poder de escolha do fumante que, por sua vez, seria desqualificado quando se avalia que o cigarro eletrônico também afeta os fumantes passivos. Mas, até que ponto estas argumentações são válidas? Estimular a substituição de um mal maior por um menor é realmente uma ação válida? É ético? Talvez nunca se chegue a um consenso quanto a isso.

Este ceticismo em relação a uma posição concordante entre as diferentes partes é baseado na histórica divergência de opiniões entre um lado composto por indústria do fumo, indústria farmacêutica e parte da comunidade médico-científica e o outro lado formado por órgãos governamentais, movimentos antitabagistas e outra parte da comunidade médico-científica, que perdura desde os anos 30 do século passado. À época, médicos e dentistas estampavam anúncios publicitários de inúmeras marcas, dentre elas Lucky Strike, Viceroy e Cammels, alardeando benefícios como alívio de sintomas de ansiedade e depressão e uma teórica associação com conceitos de liberdade e sofisticação. Um anúncio da Cammels, de 1949, trazia os dizeres “médicos fumam mais Cammels do que qualquer outra marca de cigarro”, uma conduta inimaginável e eticamente inaceitável nos dias atuais.

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Com o passar dos anos, os discursos da indústria tabagista foram desconstruídos, pois se tornaram evidentes os muitos malefícios do cigarro, como ser o principal fator de risco para mais de uma dezena de tipos de câncer e estar fortemente associado com a ocorrência de doenças cardiovasculares. Com isso, foram impostas restrições para a publicidade do cigarro em veículos de comunicação e organização de eventos com associação direta às marcas de cigarro, como os extintos “Free Jazz Festival”, “Hollywood Rock” e “Carlton Dance”, assim como outras medidas antitabagistas. Com isso, as gigantes corporações do fumo como Philips Morris e Souza Cruz viram-se obrigadas a reinventar seus discursos, quase sempre formando um lobby envolto em grandes fortunas. Em determinado momento, o foco esteve em enaltecer uma bravura inerente apenas aos homens que fumavam (comerciais com caubóis, da marca Marlboro, são exemplos emblemáticos) e cigarros com menor teor de nicotina, os chamados light, para atrair principalmente o público feminino, que se sentia livre, inclusive para fumar.

Já nas últimas duas décadas, vieram os alertas nos maços dos cigarros, com imagens impactantes referentes aos males do tabagismo. Como resposta, a empresa Souza Cruz lançou em 2003 a campanha “Fume com Moderação”, com a proposta de convencer os fumantes de que eles podem, apenas com a força de vontade, reduzir o consumo de cigarros. Além disso, foram inseridos cartões com propaganda dentro dos maços para ofuscar as fotos que alertavam sobre câncer e impotência masculina, por exemplo. Os cartões traziam mensagens como Aproveite em excesso. Fume com moderação e Ninguém tem o direito de fazer suas escolhas por você. A marca Free foi a mais agressiva, trazendo a seguinte mensagem aos seus consumidores:É isso que chamamos de liberdade, o ideal mais importante na vida de qualquer um. Free sempre acreditou nisso, respeitando os mais diversos estilos, opiniões, atitudes. Cada um na sua. Então seja livre para fazer o que quiser: cante, ame, dance, crie, apaixone-se, sonhe, aproveite tudo em excesso. E se você decidiu fumar, por que não com moderação? A decisão é sua. Só não deixe de ser quem você é, seja quem você for”.

As medidas antitabagistas, incluindo – mais recentemente – a proibição do fumo em lugares públicos fechados – foram bastante exitosas no Brasil em diminuir o percentual de fumantes. Hoje, apenas 17% da população brasileira é fumante, média bastante inferior aos 35% registrados 30 anos atrás. Apesar desta redução, o câncer de pulmão – o mais diretamente relacionado com o consumo de tabaco – é o tipo de câncer que, segundo o INCA, mais mata no Brasil, sendo responsável por mais de 20 mil mortes anuais. Em âmbito mundial, segundo o Globocan 2012, levantamento da IARC/OMS, os tumores de pulmão são responsáveis pela maior mortalidade na população masculina por câncer no mundo, com mais de 1 milhão de óbitos por ano (30 mortes para cada 100 mil homens do planeta).

O cigarro convencional, neste cenário atual, está deixando de ser o “plano A” dos lobistas do tabagismo atuantes no mercado brasileiro e em outros onde o cerco ao fumo é mais ferrenho. Daí o alto investimento em mostrar como factível o cigarro eletrônico e também os cigarros com aditivo de sabor. Um dos exemplos recentes é um estudo do Moffitt Cancer Center, de Tampa, na Flórida, com declarado conflito de interesse com a Pfizer. Publicado em 28 de agosto na Nicotine & Tobacoo Research Advance Acess, os autores apresentam os e-cigarretes como alternativa ao cigarro com foco na redução de danos, concluindo ser positivo direcionar políticas públicas de saúde e intervenções clínicas ao encorajamento da mudança de hábito.  Uma semana antes, outro grupo publicou na Environmental Science Process Impact, um trabalho que compara a existência de metais e outros componentes orgânicos nos cigarros eletrônicos e comuns, assim com os níveis de emissão aos quais fumantes e fumantes passivos são expostos. Os autores concluíram que o modelo eletrônico é mais seguro, por representar menos efeitos nocivos de inúmeras substâncias, tanto em ambiente aberto quanto fechado, conforme tabelas e gráficos do artigo. Por sua vez, o trabalho não traz o campo referente a haver ou não conflito de interesse.

Na contramão, um estudo longitudinal com mais de 700 participantes adultos na cidade de Barcelona, na Espanha, conduzido entre março de 2013 e fevereiro de 2014, demonstra que o consumo de cigarros eletrônicos está fortemente associado ao consumo de cigarros convencionais, o que adicionaria um hábito nocivo a outro já bem estabelecido. Segundo o trabalho, 6 entre 10 usuários de e-cigarro declararam ter preferência pelos modelos convencionais. Esta não substituição invalidaria, portanto, a hipótese da indústria tabagista referente a redução de danos. Multicêntrico, o estudo foi financiado pelo Instituto de Salud Carlos III do Governo da Espanha e Ministério da Saúde do Governo da Catalunha. Os autores declaram não haver conflito interesse.

Novos capítulos deste embate continuarão em pauta. O que cabe aos cientistas, médicos, governantes, jornalistas e demais formadores de opinião é avaliar quais são as melhores estratégias para promover melhor qualidade de vida para a população, mantendo-se atualizados quanto à literatura médico-científica, não carregando um pré conceito no momento de avaliar as possíveis evidências relacionadas aos produtos alternativos ao cigarro e, ao mesmo tempo estar atento às investidas – nada inocentes – dos lobistas das megacorporações do fumo e da milionária indústria farmacêutica. Recomenda-se, como exercício de reflexão, assistir aos filmes “O Informante” (The Insider), de 1999, sobre um ex-executivo da indústria do fumo que concedeu aquela que seria uma impactante entrevista para o renomado 60 Minutes, da rede norte-americana CBS e “Obrigado por Fumar” (Thank you for Smoking), de 2005, que relata as estratégias de um lobista para criar argumentos que legitimem o hábito (não o vício, no discurso dele), de fumar.

Referências bibliográficas

Harrell PT, Marquinez NS, Correa JB, Meltzer LR, Unrod M, Sutton SK, Simmons VN, Brandon TH. Expectancies for Cigarettes, E-Cigarettes, and Nicotine Replacement Therapies Among E-cigarette Users (“Vapers”). Nicotine Tob Res. 2014

Martínez-Sánchez JM, Ballbè M, Fu M, Martín-Sánchez JC, Saltó E, Gottlieb M,Daynard R, Connolly GN, Fernández E. Electronic cigarette use among adult population: a cross-sectional study in Barcelona, Spain (2013-2014). BMJ Open. 2014 Aug 25;4(8).

Saffari A, Daher N, Ruprecht A, De Marco C, Pozzi P, Boffi R, Hamad SH, Shafer MM, Schauer JJ, Westerdahl D, Sioutas C. Particulate metals and organic compounds from electronic and tobacco-containing cigarettes: comparison of emission rates and secondhand exposure. Environ Sci Process Impacts. 2014 Sep 2.

West R, Brown J. Electronic cigarettes: fact and faction. Br J Gen Pract. 2014 Sep;64(626):442-3.

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